O sorriso de Elisa sumiu naquele domingo de natal. Embora o verão tivesse chegado semanas antes, a manhã estava nublada e o sol se recusava a aparecer.
Embaixo do pé de amora, que subia quando era pequena para se esconder no telhado do vizinho, estava Adélia, sentada à sua frente, encarando os olhos grandes e claros da filha adotiva. Aos 14 anos, a garota nem imaginava que as palavras despejadas pela mãe, mudariam para sempre o seu conceito sobre família.
Num misto de ansiedade e desespero, Adélia agarrou as mãos de Elisa e contou que viu o tio da garota deitado de concha com o seu irmão de 10 anos, fazendo coisas de adulto. Aos 87 anos, Adélia nunca tinha se permitido chorar na frente de ninguém. Todos descreviam a velha como uma mulher forte, que sempre encarou com um sorriso as dificuldades que poucos suportariam.
Enquanto descrevia a cena, fazia um esforço absurdo para conter as lágrimas que insistiam em cair. Sem acreditar no que acabara de ouvir, Elisa sentiu como se o próprio coração quisesse sufocá-la. Sua garganta fechou e o coração agia como se quisesse cometer suicídio dentro do corpo dela.
Com apenas 14 anos, Elisa era muito madura para a pouca idade que tinha. Passou por muitas coisas que a forçaram a reagir com coragem mesmo sem força, nos caminhos que teve que cruzar. Mas nem mesmo toda a coragem e racionalidade impediam as reações do seu corpo. Ao ouvir os detalhes da cena que a mãe adotiva descrevia em meio a lágrimas e mãos trêmulas, o corpo da menina se transformava em cenário de guerra.
O coração entrou em surto e batia mais rápido que o coração de um beija-flor. A garganta trancada, unia toda a força que tinha para evitar que gritos e choros saíssem goela a fora. Os órgãos começaram a socar o estômago causando ânsia de vômito. Com toda essa batalha dentro do próprio corpo, Elisa segurou firme na mão da avó e perguntou como o irmão reagiu diante da situação.
Apertando a mão da menina com a mão esquerda e segurando o peito com a direita, Adélia respondeu que o garoto correu atrás dela e implorou de joelhos e chorando que ela não contasse para a mãe porque ela o mataria.
Adélia sabia que a sua filha mais velha seria capaz disso, e lembrou de todas as vezes que ela espancou e deixou os filhos de castigo, trancados e sem comida. Aos 87 anos de sua existência, nunca tinha pensado sobre o caráter doentio e ruim de seu casal de filhos. Sempre fechou os olhos e ouvidos para as crueldades que ambos cometeram, e agora, se via de mãos atadas diante do crime praticado debaixo do seu nariz e dentro da própria casa.
Elisa foi adotada pela família quando tinha seis meses de vida. A mãe biológica era prostituta e morreu aos 25 anos atropelada por um carro de madrugada. Sua insignificância era tanta que ninguém nunca se interessou em investigar se o acidente foi uma fatalidade ou proposital.
Sentada embaixo do pé de amora, Elisa sentia o coração convulsionar dentro do peito. Sabia que a avó jamais denunciaria o próprio filho, e o irmão não tinha o discernimento para entender a cicatriz perturbadora e o rombo que o tio deixara ao roubar sua infância.
Enquanto esfregava os pés descalços na terra vermelha, os olhos claros de Elisa desviaram dos olhos escuros e desesperados da avó. Distraída, a garota testemunhava sem piscar o primeiro voo de um passarinho no topo da amoreira. Após um bombardeio de pensamentos peregrinos na sua cabeça, Elisa desejou ser um pássaro para voar para bem longe daquela escuridão que espancava o seu coração.